Jussara Lucena, escritora

Textos

A mucama

Numa manhã de sol os escravos da fazenda do Coronel Ludovico Assunção espalhavam o café para secá-lo. No mesmo pátio algumas mulheres pretas cuidavam de seus afazeres. Uma delas a mucama Luzia cuidava de um dos filhos do Coronel e Dona Genoveva. A outra, Gertrudes uma escrava de quinze anos de idade, estendia as roupas no varal. Ela mal dava conta de sustentar a barriga de oito meses de gravidez. Era mais um dos filhos do Coronel, diziam.

Luzia conhecia bem esta situação. A escrava de boa aparência era a preferida de seu senhor e também servia de dama de companhia de Dona Genoveva. Teve seu primeiro filho com Ludovicoaos quatorze anos de idade, em 1871, mesmo ano da aprovação da Lei do Ventre Livre. O filho e os outros três que vieram depois foram entregues pelo Coronel ao governo. Ele não queria arcar com os custos de ingênuos que não poderiam ser tratados como escravos. Conservava apenas o último filho com ela, uma concessão de seu senhor. Augusto, um garoto de 10 anos, tinha a mesma idade de Manoel o filho de seus senhores do qual Luzia tomava conta.

A mucama passava o dia cuidando deDona Genoveva e Manoel, servindo-lhes do bom e do melhor. À noite, quando voltava para a senzala mal tinha o que entregar para o seu Augusto, que passava o dia alimentando os animais da fazenda.Para dormir, dividia o mesmo colchão de palha com o filho.

Na escuridão daquela noite de lua nova aproveitava os poucos momentos de descanso para acarinhar e conversar com seu filho:

- Mãe, porque o meu cabelo é claro? Os outros meninos da senzala ficam rindo de mim, pois, eu não sou como eles. Chamam-me sarará, sarará de sangue ruim.

- Você é sangue do meu sangue, meu filho e posso garantir que não temos sangue ruim. Seu pai foi um homem branco, por isso o seu cabelo é diferente.

- Quem é o meu pai?

- Não sei meu filho. Ele apareceu aqui um dia e logo se foi.

- Os meninos dizem que o meu cabelo é assim porque a senhora amamentou o Manoel e a mim ao mesmo tempo.

- Amamentei meu filho, mas isto não faz ninguém ter o cabelo avermelhado – respondeu a mãe lembrando que quando alimentava o filho de Dona Genoveva mal sobrava leite para o seu Augusto que o recebia de outra escrava.

- Mãe, se eu nasci livre, porque eu não posso sair daqui?

- Porque enquanto sou propriedade do Coronel não tenho como cuidar de você fora daqui meu filho e não quero perde-lo como perdi os seus irmão.

- Eu sinto falta dos meus irmãos. Eles vão voltar um dia?

- Não meu filho, eles não vão voltar. Estamos sós agora.

- Mãe, eu nunca vou deixar você!

- Claro meu filho, claro. Agora durma um pouco. O dia amanhece logo.

- Tenho medo. Ontem à noite eu ouvi os gemidos do Bastião e hoje eu vi quandoo jogaram todo ensanguentado no gramado. Durante a noite eu sonhei que o meu rosto estava todo cheio de cicatrizes como as do Bastião. Os outros escravos dizem que eleé que é homem de verdade e que eles são um bando de medrosos. Talvez eu seja medroso também.

- Eu já lhe ensinei: diga sempre sim, não discuta com os seus senhores. Assim,mesmo nos maltratando, eles nos toleram.

Luzia cantarolou uma canção e vencido pelo cansaço Augusto dormiu. A mãe ainda levou algum tempo para pegar no sono, pensava nos outros filhos. Estariam vivos?

Mal fechou os olhos o galo cantava. Estava na hora de levantar. Deu alguma coisa para Augusto comer e se preparava para correr até a cozinha da casa grande fazer o café da manhã da família do Coronel, quando Augusto falou:

- Mãe. Eu tive um sonho muito bonito esta noite.

- É meu filho. Sonhou com o que?

- Com uma mulher. Ela tinha os olhos azuis como os do Manoel.Trajava um vestido claro, de um tecido com brilho. Ela chegou, colocou a mão na minha cabeça e me disse: “você e sua mãe e todos da sua raça estão livres!”. Ela me entregou uma flor que eu nunca havia visto. Eu perguntei que flor era aquela e ela me disse que se chamava camélia, vinda de um lugar ainda mais distante que a Ãfrica, local de origem dos meus antepassados. “A flor é um símbolo de liberdade”, me disse ela, também.

- Existe brancos bons meu filho. Quem sabe ela fosse um anjo!

- Agora me deixa correr, senão fico de castigo e não posso cuidar de você. – completouLuzia beijando o filho.
Na cozinha Luzia servia seus senhores. Como sempre, o Coronel já acordava mal humorado, reclamando de tudo. Passou por ela e lhe deu um tapa no traseiro. Dona Genoveva fingia não perceber. Já sentado à mesa o Coronel lia o jornal e comentava as notícias com a esposa:

- Não me faltava mais nada! Será que o Imperador ficou maluco?

- O Imperador está na Europa. – comentou Dona Genoveva.

- Está, mas com o telégrafo ele consegue se comunicar com o Brasil. Poderia ter orientado melhor a maluca da filha, a Regente Isabel.

- Ela é uma boa pessoa, religiosa e uma mãe dedicada. Dizem que ela recebeu a mesma educação de um homem para governar, mas governa com o coração de mulher.

- Então não aprendeu nada. Ela vai nos arruinar!

- Mas o que ela fez de tão trágico?

- A manchete diz: “Não há mais escravos no Brasil. Foi aprovada a Lei 3353 no dia 13 de maio de 1888, dia do 121º ano do nascimento de Dom João VI, que declara extinta a escravidão no Brasil. A Redentora Isabel, a Princesa das Camélias, assinou a tão esperada lei com uma pena dourada especial para a ocasião, doada pelo proprietário do Sítio do Leblond, José de Seixas Magalhães”.

- E agora Ludovico, perderemos nossas propriedades?

- Não vou permitir! Não bastasse este bando de imigrantes chegando e exigindo salários, agora perderemos nossa mão-de-obra. Eu não aceitarei tal lei.

- Vai pegar em armas contra o Império?

- Não, mas na minha fazenda mando eu.

- Luzia! – chamou o Coronel.

- Sim, meu senhor.

- Você não ouviu nada do que dissemos nesta cozinha hoje. Se algum preto souber do que falamos mando cortar a sua língua. – gritou Ludovico.
A escrava apenas assentiu com a cabeça. Ela ficou pensando na leitura do Coronel. Seria a Princesa o anjo que aparecera no sonho de Augusto?

- É mesmo um absurdo! Veja isto Genoveva. Num outro trecho o jornal diz que "Durante o dia e a noite de ontem continuavam cheias de animação as festas comemorativas da liberdade nacional. A rua do Ouvidor, constantemente cheia de povo, apresentava o belo aspecto dos grandes dias fluminenses. As casas marginais primorosamente ornamentadas estavam repletas de senhoras. De tempos em tempos, aqui, ali, acorria um viva aos heróis da abolição cortava os ares estridentes”. Só mesmo os fluminenses para comemorar esta tolice! – esbravejou Ludovico.

Quando o Coronel saiu da mesa ainda resmungando e declarando o fim da monarquia no Brasil Luzia arriscou-se e perguntou para Dona Genoveva:

- Como é a Princesa Isabel?

- Porque a curiosidade Luzia?

- Nada não, só queria imaginar o rosto dela.

- Ela tem descendência austríaca, tem a pele clara e olhos azuis.

- O que é uma camélia?

- É uma flor muito bonita, que veio do outro lado do mundo. Ela virou um símbolo do abolicionismo.

- Cada palavra difícil. O que é abolicionismo?

- É a ideia de alguns desorientados que querem libertar o seu povo. Acham que os maltratamos. Para onde você acredita que irão os libertos e do que viverão? Se os seus senhores não os ajudarem vão morrer de fome!

Luzia não teve dúvida de que era a princesa no sonho do filho. Não aguentava a ansiedade por contar a novidade ao garoto. Porém, precisava alerta-lo para não contar para ninguém.Antes precisava cuidar de Manoel.

O menino já estava acordado, se mantinha deitado. Quando percebeu a presença da mucama, falou-lhe:

- Luzia, eu queria continuar dormindo. Eu tive um sonho tão gostoso. Acordei com o barulho da charrete do papai que passou pela calçada em frente ao solar. Que pena!

- E com o que sonhava meu menino?

- Que eu e o seu filho Augusto brincávamos juntos. Andávamos a cavalo e caçávamos passarinhos. Eu o chamava de meu irmão e ele sorria para mim com aqueles dentes brancos.

Uma lágrima escorreu pela face de Luzia quando ela lembrouque os dois meninos possuíam um pouco do mesmo sangue.

- Luzia, você me ouviu?

- Ouvi sim, Manoel.

- Me diga por que eu não posso brincar com o Augusto?

- Ele é um filho de escrava e você o filho de um Senhor de escravos. Não convém que sejam vistos juntos.

- Eu nunca quero crescer. Os adultos são maus. Meu pai é mau. Eu olho para o Augusto e ele me evita olhar nos olhos. Ele é o filho de escrava e eu é que me sinto preso, sem companhia, sem amizades. Seu filho trabalha junto com os outros meninos, corre com os outros meninos.

Ele é mais feliz do que eu sou!

- Acredite meu menino, a vida dele e dos outros meninos não é nada fácil. Talvez, um dia, negros e brancos possam ser mais amigos, companheiros.

Manoel assentiu com a cabeça e logo se distraiu com alguns brinquedos.

Quando circulava pela casa Luzia percebeu que o Coronel havia derrubado o jornal lido pela manhã. Escondeu-o na roupa e levou consigo para a senzala.

- Veja Augusto! É esta a mulher que apareceu no seu sonho?

- Não acredito! Ela existe de verdade?

- Existe sim, o nome dela é Isabel. É uma princesa, a filha do Imperador.

- O que diz esse papel mãe?

- Eu não sei ler, meu filho, mas pelo que o Coronel falou, este jornal confirma o que a moça branca lhe disse no sonho. Ela libertou os escravos.

- Então precisamos contar para os outros, chega de castigos e humilhações!

- Não podemos meu filho, o Coronel não quer que ninguém saiba. Ele é um homem perigoso e vingativo.

Quando todos dormiam, Augusto procurou o escravo Isaias. Um padre o havia ensinado a ler, poucos sabiam disso.

Isaias era muito respeitado, muito embora não fosse um dos homens mais fortes. “A maior força está na inteligência”, dizia Isaias.

- O que é isso moleque? Me deixa dormir, o dia foi muito duro.

- Isaias, leia este jornal!

- Amanhã eu leio, vá dormir!

- É importante, você vai ver. Precisamos contar para os outros. Não diga para a minha mãe que eu lhe mostrei.
Isaias foi até um canto na senzala, encontrou um toco de vela e ascendeu num carvão em brasa que restava na cozinha. Leu o texto com atenção. Uma lágrima correu pela sua face. Por alguns instantes um sorriso lhe estampou o rosto. Logo depois suas feições se transformaram e seus olhos se encheram de ódio.

Ele chamou cada um dos homens pretos na senzala e contou o que acontecera. Deram um jeito de atrair o vigia, que àquela hora estava bêbado e roubaram-lhe as chaves das trancas que os mantinham presos no ambiente. Silenciosamente desarmaram e prenderam os outros vigias e foram até o solar.Arrobaram a porta e gritaram o nome do Coronel que, assustado, desceu as escada de arma em punho.

Isaias se mantinha à frente do grupo e questionou o Coronel:

- Então o Senhor estava escondendo de nós que agora somos homens livres?

- Não sei do que está falando preto, saiam já da minha casa!

- O Senhor sabe sim! – gritou Isaias sacudindo as folhas do jornal.

- Saiam ou eu atiro!

- O Senhor tem duas balas Coronel, nós somos trinta.
- Onde vocês conseguiram este jornal? Já sei, foi Luzia, aquela preta ingrata. Confiei minha família aos cuidados dela.

Neste momento Luzia entrou no ambiente. Augusto a seguia, sem que ela soubesse. Quando percebeu a presença dela, o Coronel não teve dúvida e disparou os dois tiros da arma contra o peito da mucama. A mãe caiu nos braços do filho e agonizante disse-lhe:

- Vá meu filho, aproveite a liberdade que eu nunca tive. Faça isso por mim, faça pelos seus irmãos.

O Coronel ainda tentou reagir, distribuindo golpes com a espingarda sem munição. Não demorou e o grupo conseguiu dominá-lo. Parte do grupo que havia se apossado das armas dos vigias já invadira o alojamento dos outros peões da fazenda e os acorrentado na senzala.Ludovico foi amarrado ao poste e açoitado na frente de Dona Genoveva e de

Manoel que tentava se esconder em meio ao vestido da mãe. A casa grande foi incendiada junto com os galpões do café.

O Senhor de escravos morreu, não pelo açoite, mas,teve um
ataque cardíaco fulminante ao ver todo o seu patrimônio perdido.Dona Genoveva e Manoel, em estado de choque permaneceram ao lado do corpo do Coronel.

Isaias, Augusto e mais dois homens enterraram o corpo de Luzia, próximo de um cedro, no alto de uma colina. Fizeram uma oração e se aprontaram para abandonar a fazenda.

Augusto foi até Manoel e disse-lhe:

- Hoje morreram a minha mãe e o seu pai. É um dia muito triste. Mas, antes de ir embora eu queria lhe dizer algo: apesar de todas as nossas diferenças eu sempre olhei para você e lhe quis bem. Sei que um dia voltarei a lhe encontrar e quem sabe possamos ser amigos.

Manoel abraçou Augusto, que num primeiro momento recuou. Depois, ele também abraçou Manoel. Dona Genoveva passou a mão na cabeça dos meninos, meio irmãos, e os abraçou também.

Augusto correu para encontrar os demais. O quilombo era a única alternativa para os pretos, que continuavam fujões. A polícia não perdoaria a morte de um branco açoitado por pretos.


Texto selecionado no Concurso de Contos A Lei áurea da Série Glorioso Império do Brasil - Publicado em antologia – out/ 2014

Adnelson Campos
24/02/2015

 

 

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